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"Eu só conseguia pensar: 'O que eu fiz de errado?"

Em 2015, a paulista Maiári Iási (30) e seu companheiro decidiram que era o momento de ter um filho. Uma decisão difícil, mas muito feliz para os dois, que já tinham sete anos de relacionamento. No início da gestação, ainda em dezembro, Maiári já foi ao posto de saúde para fazer o pré-natal.

"A minha primeira consulta estava marcada para uma segunda-feira, e no domingo eu tive um sangramento pequeno, então fui ao médico já apreensiva. Chegando lá, eles quiseram remarcar a consulta porque a enfermeira não tinha preenchido todos os meus dados. Chorei e tive que contar sobre o sangramento na recepção do posto de saúde, com um monte de gente olhando”.

A médica que atendeu Maiári fez um exame de toque e disse que era apenas um corrimento, mas que era importante fazer uma ultrassonografia pra averiguar melhor. A fila para o exame era de mais de um mês, então ela foi aconselhada a fazer em uma clínica particular.

“No começo do ultrassom não dava pra escutar nada. Ele [o bebê] não se mexia e, segundo o médico, estava com o tamanho de seis semanas. Eu falei que era impossível, pois tinha feito o teste antes disso e tinha certeza de que estava grávida há mais tempo. Logo, isso significava que o feto não tinha evoluído. O médico falou que não podia dar diagnóstico. Tinha que esperar outro médico verificar. Aos prantos, aguardei mais algumas horas pelo outro médico, que me atendeu sorrindo, dizendo que isso não significava um aborto, que era para eu ir pra casa e esperar. Em casa, senti muita dor e, na manhã seguinte, tive um sangramento assustador. Corremos para o hospital. Lá, eu passei por cinco exames de toque. Médicos, médicas, muitos estudantes. Me mandaram para o ultrassom de novo, e eu escutava o sangue cair no chão durante o exame. Quando levantei, vi a poça de sangue no chão. E continuavam repetindo que isso era normal"

Ninguém esclarecia o que estava acontecendo, até que os gritos de Maiári começaram a assustar as gestantes em volta. Foi aí que os médicos resolveram dar o diagnóstico: aborto em curso.

"Pedi um absorvente para a enfermeira, mas não tinha absorvente. Ela me deu uma frauda geriátrica grande e eu coloquei em mim com uma mão só. A outra segurava a roupa com sangue. E meu pé descalço pisando na poça de sangue no chão. Eu só conseguia pensar: 'O que eu fiz de errado? Por que os médicos continuam perguntando se eu fiz sexo ontem? Ninguém lê o prontuário?'. Para todo médico que chegava eu tinha que contar a história toda de novo. Depois, um questionário, várias perguntas enquanto a enfermeira preparava minha veia. Ela me informou que eu ia ficar internada. 'O médico não te disse? É, filha, vai ficar duas horas aqui'. Às 3h, me mudaram de quarto porque precisaram dele. Eu e outras duas mulheres fomos para o quarto ao lado. Uma delas também estava passando por aborto. A outra, com 8 meses de gravidez, tinha complicações de pressão. Os médicos queriam fazer uma cesárea. Ela não queria. Ela, uma mulher negra com sobrepeso, era muito maltratada, culpada pelo seu peso, por sua condição, por seu quarto filho".

Maiári ficou por quatro horas com o medicamento na veia e logo começaram novos exames de toque.

"Teve uma médica que veio na maca, abriu minha fralda e, sem falar uma palavra, enfiou a mão em mim. Saiu pingando sangue pelo quarto sem olhar pra trás”.

Às 5h, Maiári questionou uma das enfermeiras sobre o que iria acontecer. Ela informou que estavam aguardando o fim do turno para levá-la para a curetagem. O fim do turno era às 6h, mas Maiári só foi levada para o procedimento às 8h.

Uma assistente social veio conversar comigo. Depois de perguntar por que eu estava ali, ela perguntou: 'Você acredita em Deus?'. Eu disse que não. Aí ela falou, furiosa: 'Então, se isso não foi um plano de Deus, foi de quem? Seu?'. Os médicos não têm como saber quem provocou ou não o aborto, mas eles julgam como se você tivesse provocado. Vai fazer dois meses que isso aconteceu. Eu ainda tenho pesadelos. Estou fazendo terapia, mas ainda choro quando meu companheiro me toca. Eu pensei muito em processar os médicos, mas eu não quis porque acho que eles estão sendo formados de um jeito torto. Dá pra ver que não é uma coisa de caráter. É um sistema. E como se faz para processar um sistema?".

   

Os relatos são chocantes, mas a violência obstétrica vai além disso. O dossiê “Parirás com dor”, elaborado pela Rede Parto do Princípio em 2012, caracteriza os atos violentos contra a gestante como “todos aqueles praticados contra a mulher no exercício de sua saúde sexual e reprodutiva, podendo ser cometidos por profissionais de saúde, servidores públicos, profissionais técnico-administrativos de instituições públicas e privadas, bem como civis”.

"Eu chorava e pedia para não me amarrarem porque queria segurar minha filha quando ela nascesse. Não me deram ouvidos"

Por falta de dinheiro, Aline Pina escolheu um hospital público para o nascimento de sua filha Lara. Fez o pré-natal com uma obstetra e professora da UFSC, em consultas particulares, mas teve que optar pelo Hospital Universitário para realizar o parto, que já estava todo planejado: Aline queria parir de cócoras, com o mínimo de intervenções possível, escolha apoiada pela obstetra que a acompanhou durante toda a gestação. Ao dar entrada no HU, os médicos quiseram aplicar a ocitocina na gestante. "Eu não queria porque sabia que não tinha necessidade, eu estava tranquila, estava evoluindo bem, mas eles me falaram que não era uma decisão minha, que eu era uma paciente e se eu me recusasse a tomar ocitocina, era pra eu assinar um termo de responsabilidade e sair do hospital. Eu estava sem condições de pagar o parto que eu queria, então eu fiquei".  

Aline relata que uma médica plantonista aproveitou o exame de toque para "acelerar" o processo para o parto e estourou a bolsa propositalmente. Por estar na 41ª semana de gravidez, o bebê havia evacuado mecônio dentro do ventre, o que preocupou a mãe. "Na hora que ela viu o mecônio, ela não me explicou direito, me colocou para fazer a cardiotocografia, deitada, de barriga pra cima, com 7cm de dilatação, contrações fortes. Eu estava apavorada. Foi naquele momento que eles pediram pra eu parar de gritar porque eu estava gritando demais. O anestesista não vinha me perguntar se eu queria a epidural entre as contrações, ele vinha na hora do desespero. Por volta das 19h eu não aguentei e pedi a epidural, mas eu ainda estava disposta, eu queria o parto que tinha planejado pra mim e pra minha filha".

A gestante foi vítima de violência obstétrica psicológica para que tivesse um parto rápido. As intervenções médicas continuaram e outro médico verificou os batimentos cardíacos de Lara, constatando sofrimento fetal. Aline foi persuadida a fazer uma cesárea para evitar a morte da criança, mas para a sua surpresa, Lara, hoje com seis anos, nasceu saudável e sem complicações. "Minha filha nasceu e o Apgar [teste feito para medir a saúde do recém-nascido] dela foi nove no primeiro momento e dez no segundo, então ficou claro que não houve sofrimento fetal. Eles só queriam se livrar de mim o quanto antes", relata a mãe, que foi amarrada contra a sua vontade durante a cirurgia. "Eu chorava e pedia para não me amarrarem porque queria segurar minha filha quando ela nascesse. Não me deram ouvidos".

Hoje, Aline incentiva outras mulheres a exigir um parto humanizado e a questionar os procedimentos feitos por obstetras, mas ainda carrega o trauma da violência. "Eu não posso ver uma cena de parto na televisão que eu começo a chorar. Se eu tivesse o apoio que eu esperava no HU, o meu plano de parto seria seguido, mas lá eles estavam mais preocupados em acabar logo com a história e passar pra próxima parturiente, se livrar de mim logo", desabafa.

Além da violência obstétrica, Aline Pina relata a falta de sensibilidade e planejamento do hospital na hora de acomodar as mulheres em alojamentos da maternidade. "O que mais me chocou nos quartos conjuntos foi que eles colocavam mulheres que haviam sofrido aborto espontâneo, do nosso lado. Em uma cama na minha frente, tinha uma mulher que tinha sofrido um aborto espontâneo, com mais de 20 semanas de gestação, e ela estava cercada de mães e bebês. Aquilo me marcou muito. O jeito dela, o olhar dela, a quietude dela. Eu só queria sair de lá o quanto antes".

"Eles pediram pra eu parar de gritar porque eu estava gritando demais"

Fonte: Maiári Iási

Fonte: Aline Pina

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